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Requisição de dados cadastrais: o segredo de polichinelo


A “nova” Lei de Lavagem de Dinheiro nem fez um mês de vigência le dissensões doutrinárias já estão nas salas de aula e de audiência. Tratei de algumas das inovações da lei neste post.

Vejamos agora com mais detalhe o artigo 17-B da Lei 9.613/1998, introduzido pela Lei 12.683/2012:

Art. 17-B. A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito. (Incluído pela Lei nº 12.683, de 2012)

Este artigo confere ao Ministério Público e à Polícia Judiciária a atribuição para a requisição direta, sem intermediação judicial, de dados cadastrais de investigados mantidos em bases da Justiça Eleitoral, das companhias telefônicas, das instituições financeiras, dos provedores de internet e das administradoras de cartões de crédito.

Não há dúvida sobre ter sido esta a intenção do legislador. O relator do projeto de lei que alterou a Lei 9.613/98, o senador Eduardo Braga expressou-a no relatório que apresentou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado quando da aprovação da iniciativa:

“O dispositivo confere ao Ministério Público e à autoridade policial, independentemente de autorização judicial, acesso a dados relativos apenas à qualificação, filiação e endereço, não se imiscuindo na intimidade individual e, portanto, resguardando a cláusula constitucional prevista no inciso XI, do art. 5º da Constituição Federal, que garante a inviolabilidade do conteúdo da correspondência, das comunicações telegráficas, telefônicas e de dados”.

A norma harmoniza-se com a Constituição, pois a requisição direta de dados cadastrais de telefonia não se confunde com a interceptação de comunicações telefônicas, medida de investigação criminal regulada na Lei 9.296/96, para a qual o artigo 5º, inciso XII da Constituição acertadamente exige autorização judicial. Tampouco se confunde com a quebra de sigilo bancário, prevista na Lei Complementar 105/2001, segredo cujo afastamento revela a vida financeira do investigado e pode sugerir outros elementos de sua personalidade.

Os dados cadastrais não estão protegidos pelo direito à intimidade (art. 5º, X, CF), que sequer exige autorização judicial para sua flexibilização, diferentemente do que ocorre no inciso XI (busca domiciliar), inciso XII (interceptação) e inciso LXI (decreto de prisão) do mesmo artigo. Dizendo de outro modo, não há cláusula de reserva de jurisdição para o direito à intimidade.

Ainda que assim não se entenda, tais dados de cadastro são elementos relacionais públicos, o mínimo de individualização objetiva exigível para a vida em sociedade. Endereços estão expostos em correspondências e são apontados em cartórios de registro imobiliários. Números de telefone costumam ser acessíveis em serviços 102 e em listas telefônicas. Nomes completos e dados de filiação, naturalidade, nascimento, casamento e óbito compõem o registro público de pessoas naturais. Quadros societários, endereços pessoais e números de inscrição civil e fiscal constam dos registros públicos das Juntas Comerciais. E assim por diante. Os dados cadastrais são a face pública da personalidade. São o “rosto jurídico” do indivíduo na sociedade. São seu frontispício burocrático.

Ninguém de boa-fé ignora que os dados cadastrais do investigado constituem dados de identificação cuja revelação veraz é obrigatória mesmo no momento culminante da autodefesa, que é o interrogatório no processo penal. É conhecida a distinção entre interrogatório de qualificação (primeira parte) e interrogatório de defesa (segunda parte). Nesta, o réu tem o direito ao silêncio; naquela o suspeito ou acusado tem o dever de identificar-se corretamente perante o juiz, a autoridade policial ou o Ministério Público (art. 186, art. 187, §1º, e art. 6º, inciso V, do CPP).

Mais ainda! Constitui contravenção penal recusar à autoridade, quando por esta justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência (art. 68 do Decreto-lei 3.688/41). O artigo 176, inciso V, do Código de Trânsito Brasileiro tem sentido semelhante, no plano das infrações administrativas. Outrossim, segundo o artigo 1º, da Lei 12.037/2009, a pessoa civilmente identificada não será submetida a identificação criminal, por método datiloscópico, fotográfico ou genético.

Tal a importância da qualificação civil do suspeito ou réu na persecução criminal que o artigo 313, parágrafo único, do CPP, autoriza a decretação da prisão preventiva do indivíduo cuja identificação civil for duvidosa.

Portanto, longe de representar uma manifestação privada da personalidade ligada ao direito de proteção da intimidade, os dados cadastrais de qualificação pessoal são públicos e a identificação civil do indivíduo perante as autoridades públicas em geral constitui um dever de cidadania. Se nem o suspeito pode legitimamente recusar-se a identificar-se a qualquer autoridade pública, como seria possível criar óbice à obtenção desses dados de qualificação pessoal somente para procuradores, promotores e policiais?

Quando uma autoridade do Ministério Público ou da Polícia acessa tais cadastros não está a devassar a vida privada do cidadão. Está sim lançando mão de uma mera ferramenta de identificação e localização de suspeitos, a partir de endereços, dados de filiação, estado civil, profissão, escolaridade, naturalidade, nacionalidade, data de nascimento, números telefônicos (fixos e celulares), números de identificação civil (RG, CPF, título de eleitor, etc) ou números IP (internet protocol), e vice-versa.

Observe-se neste ponto que a lei usa a expressão “dados de qualificação, filiação e endereço”, compreendendo-se na primeira figura vários elementos de identificação do indivíduo nas suas relações sociais com o Estado e com outros cidadãos.

O acesso direto a estes dados cadastrais, de simples qualificação do suspeito, não fere a intimidade do cidadão (art. 5º, X, da CF), pois não revela seus gostos, afeições, afiliações, pretensões, pensamentos nem ideias, razão pela qual não há necessidade de prévia decisão judicial para sua obtenção. O artigo 17-B da Lei 9.613/98 é um simples instrumento de investigação que torna mais célere o rastreamento da autoria de delitos graves, inclusive a pedofilia facilitada pela Internet.

Além da aceleração da coleta de dados indispensáveis à elucidação da autoria e à localização de ativos, suspeitos, acusados e testemunhas, os juízes criminais terão mais tempo para cuidar de temas para os quais a Constituição ou as leis expressamente exigem decisão judicial fundamentada.

O artigo 17-B coordena-se com o artigo 2º, inciso III, da Lei 9.034/95, que, entre os procedimentos de investigação de organizações criminosas e quadrilhas, permite, em qualquer fase da persecução criminal “o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais”, alguns dos quais dependem de alvará judicial.

Como se trata de regra de índole procedimental (não incriminadora), o artigo 17-B da Lei 9.613/98 aplica-se de imediato às ações penais, aos inquéritos e demais investigações criminais em curso, não importando se o delito sob apuração ocorreu antes de 10 de julho de 2012, data da entrada em vigor da nova lei. É a regratempus regit actum

No que toca ao Ministério Público da União, o art. 8º, seus incisos II e VIII e o §2º da Lei Complementar 75/93 já eram claríssimos ao permitir a requisição direta de informações desta ordem. Por isto, o artigo 17-B não é propriamente uma inovação. Estes dispositivos também já se aplicavam ao Ministério Público dos Estados, por força do art. 80 da Lei 8.625/93 e do princípio constitucional da unidade. Eis as regras vigentes desde 1993 para o Parquet:

Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:

II – requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta;

VIII – ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública

§ 2º Nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido.

O art. 6º e incisos II e IX, da Resolução CNMP 13/2006 há mais de um lustro estatuem que o membro do Ministério Público, na condução de investigações criminais, pode “requisitar informações e documentos de entidades privadas, inclusive de natureza cadastral” e “ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública”.

Ademais, em 2010, ao julgar apelação cível que interpus em ação civil pública proposta pelo MPF na Bahia contra as companhias VIVO, TIM, OI, EMBRATEL e CLARO e a ANATEL, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região sufragou a possibilidade de requisição direta de dados cadastrais de telefonia, conforme a ementa abaixo:

DIREITO CONSTITUCIONAL. SIGILO TELEFÔNICO. INVOLABILIDADE, SALVO REQUISIÇÃO JUDICIAL. DADOS CADASTRAIS. EXCLUSÃO. POSSIBILIDADE DE REQUISIÇÃO DIRETA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEI COMPLEMENTAR N. 75/93, ART. 8º, § 2º.

1. A disposição do art. 5º, XII, da Constituição – inviolabilidade do sigilo “de dados e das comunicações telefônicas” – não se estende aos dados cadastrais dos assinantes do serviço de telefonia, em relação a requisições, especificamente justificáveis, feitas diretamente pelo Ministério Público Federal, em face do disposto no art. 8º, § 2º, da Lei Complementar n. 75/93.

2. Parcial provimento à apelação.

(TRF-1, 5ª Turma, Apelação Cível 2007.33.00.0084184/BA, rel. Des, João Batista Gomes Moreira, j. Em 24/05/2010).

Se é assim quanto ao registro das companhias telefônicas, do ponto de vista do acesso ao cadastro eleitoral, também novidade alguma existe em relação ao Ministério Público. Conforme o artigo 29, §3º, alínea `b`, da Resolução TSE 21.538/2003, o Ministério Público já podia solicitar diretamente às cortes eleitorais informações personalizadas de eleitores, definidas como “relações de eleitores acompanhadas de dados pessoais (filiação, data de nascimento, profissão, estado civil, escolaridade, telefone e endereço)”.

Na mesma linha, a Receita Federal do Brasil delimitou os dados cobertos por sigilo fiscal, mediante a Portaria RFB 2.166/2010. Segundo seu art. 3º, §1º, incisos I e II, não estão protegidas por sigilo fiscal as informações cadastrais do sujeito passivo, “assim entendidas as que permitam sua identificação e individualização, tais como nome, data de nascimento, endereço, filiação, qualificação e composição societária”. Não por outro motivo, o Ministério Público da União (MPU) há vários anos tem acesso direto on-line a tais informações de contribuintes, por meio do sistema SERPRO/CPF/CNPJ. Tal regra está em perfeita sintonia com o disposto no artigo 998, §1º, inciso II, do Decreto 3.000/1998, que se remete ao artigo 198 do CTN.

Se na legislação o tema parece solucionado, a jurisprudência não destoa. Em 2008, o STJ decidiu que “Não estão abarcados pelo sigilo fiscal ou bancário os dados cadastrais (endereço, nº telefônico e qualificação dos investigados) obtidos junto ao bando de dados do Serpro” (STJ, 5ª Turma, Edcl no RMS 25.375/PA, rel. Min. F[elix Fischer, j. 18/nov/2008).

A 7ª Turma do TRF-4 também afirmou que “os elementos cadastrais revestem-se de natureza objetiva e estão relacionadas com o próprio exercício da cidadania e, via de regra, não se encontram acobertados pela esfera de proteção do art. 5º, X e XII, da Constituição Federal” De acordo com a Corte Regional sulista, “o sigilo bancário abrange apenas as ‘operações ativas e passivas e os serviços prestados’, conforme dispõe o artigo 1º da Lei Complementar 105/01, desta forma não incluindo os dados cadastrais de correntistas, entendidos como o nome, endereço, telefone, RG ou CPF (ou CNPJ)” (TRF-4, 7ª Turma, rel. Des. Fed. Tadaaqui Hirose, Correição Parcial 2009.04.00.023525-0/PR).

Assim, tecnicamente nenhuma novidade há no artigo 17-B da Lei 9.613/98, em relação ao Ministério Público. A regra serve como reforço a uma atribuição que já existe em lei complementar e está assegurada por decisões judiciais do TRF-1, do TRF-4 e do STJ, assim como por normativos da RFB e do TSE. Porém, para a Polícia Federal e as Polícias Civis, o artigo 17-B representará um grande incremento competencial e simplificará a instrução de seus inquéritos.

Diga-se ainda que, embora situado na Lei de Lavagem de Dinheiro, este dispositivo pode ser invocado para a apuração de qualquer delito. O legislador não limitou seu escopo à lavagem de ativos – não usou a expressão “para os fins desta lei” ou frase equivalente – e nem teria razão para fazê-lo, uma vez que agora toda e qualquer infração penal produtora de ativos ilícitos pode ser delito antecedente de lavagem de dinheiro.

A regra do art. 17-B da LLD estende-se também à instrução de inquéritos civis, pois muitas das violações a direitos difusos e coletivos são também infrações penais, tal como ocorre corriqueiramente com os atos de improbidade administrativa previstos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92.

Sendo assim, doravante os Ministérios Públicos e a Polícia Judiciária (a Federal e as Civis dos Estados) poderão, com base no art. 17-B da Lei 9.613/98 expedir requisições diretamente às pessoas jurídicas detentoras dos dados cadastrais, ordens estas que deverão ser cumpridas sob pena de desobediência (art. 330 do CP). Obviamente, tais requisições – ou solicitações quando endereçadas ao TRE ou ao TSE – deverão ser devidamente formalizadas em inquéritos policiais, procedimentos investigatórios criminais, inquéritos civis ou em ações penais.

O abuso dessa atribuição pelo membro do Ministério Público ou pela autoridade policial pode caracterizar os delitos de prevaricação (art. 319, CP), ou violação de sigilo funcional (art. 325, §1º, CP), e ainda ato de improbidade administrativa e falta disciplinar, a ser apurada pelo CNMP ou pelas corregedorias correspondentes.

Para evitar controvérsias desnecessárias, é prudente que a ANATEL, no que tange às empresas de telefonia e aos provedores de internet; o BACEN, no que se refere às instituições financeiras e às administradoras de cartões de crédito; e o TSE, no que toca ao sistema de cadastro de eleitores, cada um na sua esfera de competências, regulamente o acesso direto do Ministério Público e da Polícia às informações cadastrais integrantes de suas bases de dados, ou complemente os regramentos já existentes, como é o caso do TSE.

Não custa lembrar que, à luz do art. 43, §4º, da Lei 8078/90 – CDC, os bancos de dados e cadastros que contenham dados de consumidores “são considerados entidades de caráter público”, o que significa que tais dados cadastrais são, eles mesmos, de natureza pública e portanto acessíveis pelos órgãos da Administração Púbica.

O balanço acerca desta nova disposição legal é positivo. Finalmente um óbolo de sanidade no caótico modelo persecutório brasileiro. Desde o dono da quitanda ou da vendinha – com sua linha direta com o SPC e a SERASA – até o estelionatário mais mequetrefe, todos tinham pleno acesso direto a dados cadastrais de consumidores e de suas vítimas, para fins lícitos e ilícitos, respectivamente. Só a Polícia e o Ministério Público não.

Em tempo

A Nova Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013) também tem dispositivos (arts. 15, 17 e 21) que permitem a requisição direta de dados cadastrais pelo Ministério Público e pela Polícia, estabelecem prazo de custódia de dados e criminalizam a conduta de recusar-se a informá-los ou a de quem os devassa ou divulga indevidamente:

Art. 15. O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito.

Art. 17. As concessionárias de telefonia fixa ou móvel manterão, pelo prazo de 5 (cinco) anos, à disposição das autoridades mencionadas no art. 15, registros de identificação dos números dos terminais de origem e de destino das ligações telefônicas internacionais, interurbanas e locais.

Art. 21. Recusar ou omitir dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia, no curso de investigação ou do processo:

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, de forma indevida, se apossa, propala, divulga ou faz uso dos dados cadastrais de que trata esta Lei.

Este diploma também foi atacado por ação direta de insconstitucionalidade, esta proposta pela Associação Nacional das Operadoras de Celular (ACEL). A ADI 5063/DF, relatada pelo min. Gilmar Mendes, mereceu parecer contrário do Procurador-Geral da República Rodrigo Janot, em 22 de julho de 2014. Leia a íntegraaqui.

Os argumentos em prol da constitucionalidade das Leis 9.613/1998 (alterada pela Lei 12.683/2012) e 12.850/2013, num e noutro caso são muito semelhantes.

Nessa mesma linha, merece menção o §2º, do artigo 2º, da Lei 12.830/2013, que assegura aos delegados de Polícia, no curso da investigação criminal, a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.

[atualizado em 4 de agosto de 2014].

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