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Cooperação em Pauta


A divisão do mundo em Estados não é capaz de encerrar o homem, suas relações e atividades dentro dos limites das fronteiras a soberania e da jurisdição.

Isto é verdade para todos os fenômenos da vida humana: tantos os civis, como a compra e venda e o casamento; quanto os criminais, se formos nos ater à classificação da vida humana feita pelos sistemas jurídicos.

O Estado é o organismo que diz o direito, mas, via de regra, só pode garantir legítima e autonomamente esta prestação jurisdicional nos limites de seu território. Então, se as atividades humanas não se limitam a uma jurisdição, como garantir plenamente os mais elevados princípios do Estado como a dignidade da pessoa humana, e a efetividade de jurisdição e do acesso à Justiça a despeito das limitações territoriais da jurisdição?

Conceito de Cooperação Jurídica Internacional

A cooperação Jurídica Internacional pode ser definida, de um modo amplo, como a atuação jurisdicional dos Estados em colaboração. O Poder Judiciário ou a autoridade jurisdicional se prestam à colaboração com autoridade estrangeira competente. Essa interlocução colaborativa, no mais das vezes, é articulada por meio da Autoridade Central.

Como pode o Estado prestar jurisdição efetiva em um processo penal que objetiva identificar autores do crime de tráfico de seres humanos que atuam no exterior? Como pode um Estado garantir ao seu cidadão a efetividade de uma ação de alimentos em que o pai alimentando reside fora do país? São exemplos de cooperação jurídica internacional a extradição, os atos de citação e a obtenção de provas no exterior. E qual a relação entre os princípios da dignidade da pessoa humana, do acesso à justiça e da efetividade de jurisdição e a cooperação jurídica internacional? É possível conceber um sistema de cooperação jurídica internacional refratário à ampla colaboração ou desconfiado da jurisdição estrangeira? Dignidade da pessoa humana, Acesso à Justiça e Efetividade de jurisdição garantidos via cooperação

Os valores estatais mais essenciais como a dignidade da pessoa humana devem pautar toda a atuação estatal e, no caso, a atuação jurisdicional interna, assim como a cooperação jurídica internacional. Entretanto, só é possível garantir a observância a estes valores ou princípios se os Estados que cooperam se norteiam pela confiança, compreensão e respeito aos atos jurídicos praticados no exterior e, em última análise, ao sistema jurídico estrangeiro.

É preciso entender que favorecer a ampla e adequada cooperação jurídica internacional é também concretizar de vários modos o princípio da dignidade da pessoa humana. E, para realizar o princípio da dignidade da pessoa humana pela via da cooperação, é necessário restringir as exceções ou hipóteses de denegações à cooperação. Restringi-las somente às hipóteses em que há ofensa às garantias da dignidade da pessoa humana, ao devido processo legal, ampla defesa, contraditório e demais valores essenciais do Estado. Neste ponto, é interessante observar a redação da Emenda Regimental nº 18, de 17 de dezembro de 2014, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), texto que revoga a Resolução nº 9, de 4 de maio de 2005 do mesmo Tribunal. Destacam-se dois artigos.

Art. 216-F. Não será homologada a sentença estrangeira que ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública.

Art. 216-P. Não será concedido exequatur à carta rogatória que ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública.

Estes artigos inovam ao trazer como óbice a atos de cooperação, ao lado da ofensa à ordem pública, hipótese em que se reconhece ter havido na jurisdição estrangeira ofensa à dignidade da pessoa humana. Não poderia haver hipótese mais clara de dever do Estado brasileiro em negar efeito à decisão estrangeira, negando, portanto, a própria cooperação.

Mas, então, antes de dezembro de 2014 o Brasil reconhecia em seu território atos de jurisdição estrangeira que ofendiam a dignidade da pessoa hu mana? Não. Sempre se entendeu que a expressão “ordem pública” abarcava este e outros valores essenciais do Estado brasileiro. É mesmo possível que o conceito de dignidade da pessoa humana seja em muito coincidente com o conceito de ordem pública. E como se distinguirão agora?

A Resolução nº 9 do STJ e antes dela o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e a Lei de Introdução ao Código Civil (versões de 1917 e 1942) e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro não se referiam à dignidade da pessoa humana, mas à ordem pública. E o conceito de ordem pública sempre foi interpretado como alcançando a dignidade da pessoa humana.

Além desta inovação normativa, omite-se no texto da Emenda Regimental do STJ a referência ao auxílio direto que existia na Resolução nº 9 do STJ. Que implicação isto tem para a cooperação via STJ?

O auxílio direto não é mecanismo de cooperação entre tribunais ou juízes. Entretanto, o conceito trazido na Resolução nº 9 servia de apoio conceitual e suporte para delimitação de atribuições. O novo CPC, Lei 13.105 de 2015, pode agora substituir a Resolução como guia normativo.

E, tratando-se do novo CPC, o artigo 26 merece atenção:

Art. 26. A cooperação jurídica internacional será regida por tratado de que o Brasil faz parte e observará:

(...) § 1º Na ausência de tratado, a cooperação jurídica internacional poderá realizar-se com base em reciprocidade, manifestada por via diplomática.

§ 2º Não se exigirá a reciprocidade referida no § 1º para homologação de sentença estrangeira.

A introdução legislativa da exigência de reciprocidade, no §1º do artigo, impõe novo requisito para a consecução da cooperação civil. Os desdobramentos deste dispositivo ainda não podem ser identificados em toda sua extensão. Somente a prática e a jurisprudência serão capazes de moldar precisamente seu significado. Todavia, já podemos afirmar que se introduziu na cooperação jurídica internacional em matéria civil uma exigência antes inexistente nas normativas, na jurisprudência, na doutrina e nos costumes de Direito Internacional Privado brasileiro. Parece que a inspiração desta norma seria a cooperação jurídica internacional em matéria penal.

Com frequência, autores remetem o fundamento da cooperação jurídica internacional civil, na ausência de tratados, a um costume ou cortesia relacionado ao princípio do comitas gentium do direito internacional. É certo que há um benefício na consolidação das regras de cooperação, tanto por meio de tratados como pela promessa de reciprocidade. Mas qual a consequência prática de estabelecer a promessa como requisito para o atendimento a pedido de cooperação passivo? Lentidão no cumprimento da demanda concreta? O que pode prejudicar a efetividade da jurisdição. Não atendimento ao pedido, na ausência da promessa, em detrimento do acesso à justiça pelo indivíduo?

Introduzir um novo requisito para viabilizar a cooperação passiva que o Brasil já praticava significa reduzir a abrangência da cooperação? E em quais moldes se estabelecerá esta reciprocidade? Seria para atos civis de modo amplo ou para o ato específico solicitado? Somente a prática nos responderá estas questões.

Conclusão

Para garantir a dignidade da pessoa humana, o acesso à Justiça e a efetividade da jurisdição por meio da cooperação jurídica internacional é importante que as normas criadas para balizar a cooperação sejam adequadas a estes valores e princípios. É preciso superar a desconfiança da decisão judicial e do sistema jurídico estrangeiro e alargar os direitos e garantias que alicerçam a cooperação jurídica internacional que são coincidentes (e não conflitantes) com os valores, direitos e garantias que alicerçam o Estado brasileiro.

* Maria Rosa Loula - é Procuradora Federal, Doutora em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ex-Diretora do DRCI/SNJ/MJ e autora do livro: Auxílio Direto – Novo Instrumento de Cooperação Jurídica Internacional Civil, Belo Horizonte, Editora Forum, 2010.

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